Raia alto o sol de Março
Baixo rasa a toutinegra
Pairam ambos e, voando
No céu riscam a incerteza

Como o sol que nunca morre
Como a livre toutinegra
Como o rio que sempre corre
E à vista mesmo sem luz cega

Pia e chilra a passarada
Listra zenital a estrela
Alegra a vid' outror' enfadada
E Meu coração chora ao vê-la

Chora e não de tristeza
Carpe de consternação
Pinta morte e a beleza
Foge, apaga a emoção

Sabe decerto a certeza
Entende-a melhor a Razão
Não há vinho, nem cerveja
Que apague a intenção

O que importa dar de vivo?
O que importa viver são?
Do que vale ser lascivo?
Cruzar este Mundo cão?

De que vale tudo isto
Se perdido, sem recordação
Sabe mais em alvo giz o xisto
Que qualquer mestre de sábia nação

Serve de algo sonhar se a sofrer
E Só sofrendo, pois então
Se escreve História, quereis ver,
E s' erguem impérios do Chão?

Serve de algo esperar se o infinito
É tão perto e a ilusão
De lhe tocar, no limite pressinto
É tão falsa quanto não

Haverá tudo ou seremos nada?
E o que é o nada e a solução
Para Dostoievsky, Torquemada
Para o seu dilema é danação?

De que serve música, celebração
Se quanto mais efusiva a chegada
A mais custosa passa a conclusão
Se quanto mais a oferta dada
Maiores os impostos da doação?
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Canta altas sinfonias sentidas
Sente o peso da emoção
Ao longe a alva toutinegra vivida
Espalha pelos ares animação

Cá dentro tudo assim persiste
A atra bruma negra e a sensação
De desamparo pesa, magoa e insiste
Fere aleija e deixa comoção

Por aqui

Nem futuro se pressente
Nem presente há então
Tudo passa e enfim, a gente
Pensand', arrefece o coração

Miguel PadrãoMiguel Padrao