sermaoIntrodução/Explicação

Nos dias de hoje, a fé parece abandonar-nos: de todos os lados somos assolados por pessimismo, bota-abaixismo e desespero; todas as notícias são negras, toda a luz se desvanece, toda a esperança desvanece.

Não discutirei, por ora, as razões por detrás destas mudanças sociais: penso que, aliás, há muito que já o fiz, que há muito que já todos sabemos porque gira o mundo como gira, porque nos consome o temor do futuro e a instabilidade crescente. Muito pelo contrário: creio que, aquando de uma situação como a atual, é um imperativo moral louvar as nossas virtudes, para que as redobremos e reforcemos sem, é claro, nos esquecermos de criticar as nossas faltas, para as corrigirmos.

Pecadores, arrogantes, pessimistas, oportunistas, sempre os houve; o que realmente caracteriza uma sociedade, um país, uma Nação, é a capacidade dessa minoria se apoderar das rédeas do poder e da governação, fazendo e desfazendo a seu bel-prazer, minando as ações e o dinamismo de terceiros.

Afinal, facilmente se conclui que o nosso amado país, pátria de honrados conquistadores, corajosos navegadores, inventivos mercadores e intrépidos exploradores, já por várias vezes se viu confrontado com situações como a atual. Mais não seja, porque a "fórmula" desta crise é sempre a mesma - bastante mais preocupante que os pormenores da conjuntura do momento - urge lembrarmo-nos dos nossos erros, para não os virmos a repetir no futuro.

E quem melhor para nos revelar estes erros que o verdadeiro "Imperador da Língua Portuguesa", Padre António Vieira?
Durante décadas, este religioso, apogeu da retórica religiosa portuguesa, pregou contra as vilezas, os pecados e defeitos dos seus concidadãos, sempre esperando a sua redenção. Não a conseguiu, mas deixou-nos uma maravilhosa obra, que continua atual mesmo mais de 300 anos após a sua morte.

Assim, é isto a que me proponho: seguindo um novo conceito Predicável ("Quae caetera ora cruore nostro?", justamente escolhido para louvar os nossos feitos do passado, prever o que poderemos fazer no futuro e apresentar as três maiores virtudes do povo português) adaptarei o "Sermão de Santo António aos peixes", com vista a chamar a atenção para a nossa atual situação, a atualizar o pouco do Sermão que poderá estar desatualizado, mas, principalmente, para tentar esperançar este povo, este país tragado pela inércia e que dela tarda a libertar-se.

Exórdio

"Quae caret ora cruore nostro?" Ao nosso luso sangue orgulhoso e honrado, prova da nossa magnânima Epopeia e das suas mestiçadas criações, todas as costas já provaram, mais ou menos, com as lágrimas coletivas de uma Nação de partidas eternas, melancolia dos que ficam e saudade dos que partem. Não há mar por nós não navegado, costa por nós não palmeada, golfo por nós não cartografado ou rota não percorrida. Não há sangue que se prive do nosso, não há peixe que não nos saiba o nome, nem vento de que não saibamos as manhas.

Somos uma parte do todo. Contudo, nem tudo nos sorri, ainda mais nos difíceis tempos que atravessamos; há que refletir sobre as nossas faltas, os pecados próprios da nossa existência e, mormente, da escura treva e apagamento que ameaçam tragar-nos valores e moral, para nos delapidar dos únicos bens com que, nus das honras terrenas, somos trazidos ao frio e cruel mundo pela Graça Divina. Mas são por decerto vãs as minhas palavras: afinal o que um imberbe amador nas artes da oratória poderá trazer de mais-valia não valerá o tempo que o auditório dispenderá. Nada de sacro ou divino ecoará nestas palavras, que assim no vazio farão retumbante eco. Pois então, Ide! Parti para o vosso longínquo crepúsculo! Deixai-me, deixai-me porque hoje eu dirigir-me-ei às pedras da calçada, às pedras que me escutam!

Por louco, lunático ou alucinado decerto me tornarão, ao se assegurarem de que o meu cruel destino será eternamente pregar às pedras. Rirão, por decerto, do emprego de tão magnífica retórica em ouvintes tão solenes quanto informais. O seu amorfismo, a sua indiferença, apesar de cortantes, são também recompensadores: não anuirão as minhas irmãs pedras apenas ao que lhes convier, mas a tudo o que este desprezado purificador afirmar e propuser. Se vos desinteressa, ainda mal. Por demasiados Sóis preguei sem esperar mais do que a redenção alheia e a lavagem dos pecados; por demasiadas Luas orei pelas almas dos fracos, dos pecadores e dos desprotegidos, sem nunca obter resposta digna de nota. Dedicar-me-ei, assim, às pedras que aqui mesmo contemplo, certo de que, pelo menos, ressoarão as minhas palavras. Prego, então, às pedras da calçada, que se não ouvirem as minhas palavras por defeito natural, ao menos as ecoarão para a eternidade.

Se é um facto inquestionável de que a mudança dos tempos leva à das vontades, mais certo - e indesmentível, ó Pecadores inconfessados - é de que estes mudam, ainda com maior vigor e perseverança, os vícios, os gentios e até - frequentemente são estes os primeiros a vender a sua alma e empenhar o seu corpo - pregadores e evangelistas.

Assim, para quê pregar aos peixes, se o fazemos apenas como desabafo da nossa vileza, desabafo esse que deveria ser apenas e somente dirigido a Nosso Senhor, Santificetur nomen tuum, cujo perdão apenas desejamos antes de voltarmos ao pó? Certamente que, nos tempos que correm, todos os elementos estão submersos em podridão e corrupção; não menos certo é o monopólio desta culpa pelo Homem.
Contudo, como já referiu o erudito padre, sempre se corrompem menos os que se afastam mais dos seus mestres humanos, pois a influência humana, demasiado opaca, distancia tudo e todos de Deus. Assim, facilmente se concluirá que, dos quatro elementos, a Terra se destaca negativamente pelo seu estado avançado de putrefação: afinal, o Fogo dificilmente por ele será vilipendiado, apesar de se manter domado, enquanto tanto a Água como o Ar se encontram relativamente distantes da sua demoníaca pressão. Assim, usarei o presente Sermão para pregar às aves, supremas habitantes da Criação - mais não seja por voarem mais próximas do Criador - e, sob o meu prisma, bastante prejudicadas pelo Sermão original, que lhes deveria louvar a liberdade, a argúcia, a solidariedade e a intrepidez, características que o nosso povo tão bem ilustra e que deviam ser elevadas e valorizadas.

Para quê a hipocrisia de se denotar a terapia do Santo Peixe de Tobias, como o douto Padre António Vieira fez, se este há muito partiu, sem poder dar resposta aos óleos negros e imundos das terras dos Sumérios e Persas? Com que autoridade apelar como ele ao torpedo, se este sucumbiu ao tremer da falsidade e da mentira cinzenta e abafante que ameaça Tremer a Terra de uma vez por todas? Como se poderá referir o quatro-olhos, se ultimamente se têm irreversivelmente envesgado os seus bifocais portões de salvação, desfocado a sua notável clarividência, desfeita a sua omnisciência das matérias do Olimpo e do Hades, vítimas de uma bem urdida teia de conspiração, para desprover de visão - e assim de razão- o último dos guardiães dos Divinos Mandamentos? Quem corajosamente referirá a rémora, se esta valente e temerária língua de Sto. António se tem tornado numa lapa, já nem conduzindo o seu destino-quanto mais o das infindáveis naus e caravelas que, por ela apresadas, não lograram chegar a um destino outro que as agruras de um qualquer Cabo frio e tenebroso - e apenas resistindo, irredutivelmente, no seu regredido enclave à trautha final da corrupção terrena e da perdição de toda a Criação?

O Homem tudo destruiu, com a sua irmparável sede de lucro, cegueira dourada que nos cobre dos mais espalhafatosos panos, mas nos despe do único retalho que contra as arduidades da Fé nos poderá proteger. Por todas as costas, do recortado e frio Labrador aos quentes mares das índias, vem ao de cima a sagacidade daquele a quem Nosso Senhor confiou o lugar cimeiro da Sua Criação. E assim, rindo da sua heresia, prepotência aterradora e altivez, desbasta o jardim do Éden, que nos foi legado, de todas as suas maravilhosas e ímpares vidas, despe o terreno elemento, corrompe os ares e difunde o fogo.

Três virtudes, três pérolas, três portadores e três louvores. Apenas e só. Todos os restantes, irremediavelmente conspurcados e refutados - não pelo Senhor, que jamais negou algum junto de si, mas por este mortal pecador que aqui se apresenta, e cuja paciência já testaram por demais - afastem-se: não são a este sermão bem-vindos! Aterrem-se, rochas! Temei, pedrarias! Rezai, penedos! Que se inicie a redenção das vossas faltas, que comece o Sermão!

Miguel Padrão (11.º A1)Miguel-Padrao