Lembrar-me que, há 100 anos, se iniciava o maior conflito que a humanidade vira até aí, um banho de sangue enraivecido, uma confusão de metralha lancinante, uma soma nula de interesses coloniais. Que uma explosão ao lado de uma caleche, um tiro nacionalista num Arquiduque déspota e uma sucessão de mal entendidos escreveu o epitáfio de 14 milhões de jovens, enterrados sob o arame farpado, caídos nas trincheiras, asfixiados nas máscaras de gás, esmagados sobre os tanques. Lembrar tudo isso faz-me admirar quão desregulado é, foi e será o mundo para permitir que um pequeno bósnio rancoroso terminasse para sempre com a fantasia, encerrasse eternamente a era dos contos de fada, dos príncipes encantados e dos palácios brilhantes. Estripasse a Europa de grande parte da sua realeza, condenasse milhões de almas, gerasse tanto sofrimento e caos, mas iniciasse uma nova era. Sem nunca falar no subsídio de Natal.
Ver que, há 70 anos, a hegemonia nazi, já ameaçada pelos soviéticos na frente leste, era, finalmente, eliminada pelos maiores desembarques que a Humanidade já observou, causa-me uma imensa comoção. Não só com o esforço de todos aqueles homens e mulheres, dos que se agachavam nos navios e dos que se acocoravam nas fábricas, da frente francesa à Home Front, que lutaram brava e desinteressadamente pelos ideais e direitos que hoje consideramos garantidos, mas que na época eram ativamente perseguidos pela tirania hitleriana. Também, principalmente, com o suor e dificuldades de todos quantos, passando fome e frio, refizeram a Europa no pós-guerra, transformando uma ruína fumegante no motor do Mundo que sempre fora. Bem apetrechados, decerto, com subsídios de deslocação.
Há 500 anos, desfilava triunfalmente pelas ruas de Roma a mais exótica, espampanante e ousada embaixada que alguma vez se dirigira ao trono de São Pedro. Pensar que, cinco séculos depois, o mais "poderoso, nobre e valente reino da Cristandade", tornado rés pública, se viu obrigado a passar pela humilhação - necessária, por sinal -, que todos conhecemos, parte-me o coração. Mais, obriga-me a aceitar o que há já muito sabia como quase certo: os tempos mudam-se, mudam-se com eles os costumes, com eles caem impérios, erguem-se povos e cria-se saber. E, particularmente, nestes dois últimos pontos, não temos sido muito assertivos. Talvez começar a pensar um pouco além do subsídio de férias ajudasse...
Miguel Padrão