Não bastava a néscia proibição de conduzir que, cobarde, persecutória e impunemente, impõem às mulheres? Não chegavam os casamentos de decrépitos de 60 anos com virgens de 13? Não nos chocavam os incêndios e saques com que desfizeram e desfazem Tombuktu, a mesma Tombuktu que, há 200 anos, era um mistério apenas tão desejado pelos europeus como Lassa, a eterna capital do Tibete? Não nos saturam os atentados terroristas, a pirataria, os massacres que supostas "certas" e "verdadeiras" interpretações de livros sagrados consagram e advogam? Não nos preocupam os raptos dos últimos dias, na promissora mas caótica Nigéria, as condenações à morte de "blasfemadoras" que cometem o pecado de se apaixonarem por infiéis, as execuções sumárias que continuam a ser perpetradas no Níger, no Sudão, na Síria ou na Somália?
Não, de todo. Para americanos e europeus, estas paragens estão muito longe, demasiado encobertas e isoladas para entrar no jogo de interesses e influências que aqueles vêm montando desde meados do último século. Apenas uma intervenção francesa, com claros interesses no urânio e ouro maliano, impediu que este rico e importante país caísse na anarquia, na balbúrdia e no pandemónio há pouco mais de um ano.
Votados ao desconhecimento, ao desinteresse e à nulidade, estes desertos doirados transformaram-se, rapidamente, em caldeirões ideológicos, misturados por pregadores extremistas, pela Jihad e por outras entidades, que nem Deus conhece ao certo, com interesse na desestabilização da região. Entretanto, esta cresce no caos, tendo já entrado num ciclo vicioso que dificilmente será quebrado e que possui implicações extremamente gravosas para o futuro da Europa. Afinal, vimos a observar e a permitir que, nas últimas décadas surja, às portas da Europa, uma preocupante fonte de radicalismo religioso, da qual mais cedo ou mais tarde nos arrependeremos.
Afinal, estes indivíduos são, desde cedo, doutrinados no ódio ao Ocidente, aos ocidentais e a tudo o que fuja do seu puritanismo ultramontano, cego e acéfalo. Já dizia o ditado que o pior cego é aquele que não quer ver, mesmo com olhos que, fisicamente, lho permitam. Assim estão estes pobres diabos, manipulados pela família, pelas escolas corânicas, pelos pregadores e por uma versão extremada e redutora de uma fé que teria, de outra forma, tudo para prosperar e dialogar respeitosa e moderadamente com os outros credos.
Assim, de atentado em atentado, de bomba em bomba, de sequestro em sequestro, o islão vai perdendo impacto, capacidade de argumentação e suporte junto das franjas mais moderadas da sociedade. E, enquanto não se conseguir combater este flagelo, o ocidente continuará também a esbanjar dinheiro, recursos e vidas numa guerra inútil, demasiado custosa e superficial. Fútil, acima de tudo, como uma discussão de dois surdos sobre a pureza do som ou uma quezília sobre a pronúncia de dois mudos: sem produtividade, sem obtenção de qualquer ponto em comum, sem progresso de espécie alguma.
O que fazer? Bem, dos governos à sociedade civil, todos nós nos devemos unir contra esta peste fétida que ameaça roubar mais um século a uma das regiões do globo decerto mais negligenciada pelo tempo, criar uma fonte de preocupações futuras para a comunidade internacional e entravar os esforços de diálogo e moderação que tão difícil e trabalhosamente se tem obtido.
Particularmente, no que toca à ação de cada um de nós, ainda estamos demasiado longe de uma verdadeira atitude concertada sobre o assunto; diria mais, tendemos a esquecer, pura e simplesmente, tudo quanto se passe a sul do Trópico de Câncer - e que não passe pelo Mundial de futebol, obviamente - cinco segundos após nos escandalizarmos com a corrupção de um qualquer político autótone, gritarmos histericamente por uma criança prestes a ser devorada por um abutre ou esquadrilharmos um oceano em busca de um avião. Falta-nos assertividade e força de vontade para mergulharmos nas causas, em vez de remendarmos mesquinhamente os efeitos, esperando que não se repitam ou que se emendem por si só.
Desenganem-se: a história jamais volta atrás, nunca nos permitirá resgatar incólumes as 200 pobres raparigas levadas ainda há poucas semanas, retirar a dor dos ferimentos de Malala ou voltar a dar segurança a Salman Rushdie. Contudo, dá-nos em troca uma formidável oportunidade: de tempos a tempos, repete-se. Aliás, a história é justamente composta destas repetições, mais ou menos explícitas, mas sempre relacionáveis. A oportunidade, essa já a adivinham. Há que, rápida e inevitavelmente, reformar estas comunidades, aproximando-as o mais possível da moderação que lhes permitirá ver um futuro para lá do crescente. Nada de "ocidentalizar" o norte de África, nada de erigir Mcdonald's sobre as areias do Sahara, de introduzir a promiscuidade das nossas artes ou outros vícios - tudo, aliás, hábitos que os Emirados Árabes, o Qatar ou mesmo a Arábia Saudita já tomam parcial ou totalmente como seus. Apenas procurar um equilíbrio, que sirva tanto a fé dos beduínos como os direitos das suas mulheres. Que acalme tanto as intervenções estrangeiras quanto os ânimos dos mais extremistas. Que traga a paz e a prosperidade às mesmas terras que, há 700 anos, viam Mansa Mussa de lá sair, à frente da maior e mais rica caravana a que já alguma vez a história assistira, para peregrinar até Meca, a cidade santa cuja evocação tanto sangue faz, injusta e demagogicamente, jorrar nesta terra.
Miguel Padrão