Um dia, contudo, a senhora começou a mudar. Convencida, finalmente, que já não tinha como obrigação distribuir daquelas prebendas, rendas, dádivas e escolas aos que junto dela acorriam, principiou por expulsar, ameaçar ou afastar os seus abutres protegidos, obrigando-os, assim, a procurar um trabalho, uma ocupação, uma obrigação para se manterem, afastando-os da sua lânguida e relaxada existência de chulos.
Rapidamente, instantaneamente diria mesmo - sim, os rumores são dos poucos fenómenos que conseguem trocar as voltas a Einstein -, a notícia da transformação da benemérita senhora num sanguinário monstro esclavagista se espalhou por toda a região, indignando e revoltando todos quantos anteriormente bendiziam a desinteressada caridade da nossa conhecia amiga e silenciando, cumplicemente, todos os mais, que também não iam muito à bola com essas ideias de almoços grátis. A caridade começa em casa, diziam eles.
Ou muito me engano ou é mais ou menos este o quadro que se pinta, hoje em dia, na Europa a oeste do novo muro do Donbass. Enquanto a nossa eterna benemérita, envergonhada pelos seus crimes na Segunda Guerra Mundial, nos comprou os corações e as mentes, a Alemanha era o Paraíso na Terra, a supra-sumo da civilização ocidental, a criadora do Estado Social, o motor da Europa. Munique era um espanto, Frankfurt era Nova Iorque e Neuschwanstein um palácio de contos de fada. Os alemães eram trabalhadores, esforçados, dedicados, cientistas, engenheiros, médicos geniais. Enquanto esse esforço pagou a orgia que se vivia no Sul, tudo estava encaminhado. Entretanto, após 60 anos de submissão completa, a Alemanha começou a aspirar a algo mais, a ver-se numa posição diferente, a reduzir os seus contributos para os subsídios que incentivavam o amorfismo e a inatividade como modus vivendi. Aí, escusado seja dizer, estalou o verniz: os alemães já não eram os bondosos vizinhos do Norte, mas sim nazis encapuçados que comiam crianças na Oktoberfest, bárbaros mal agradecidos que já se tinham esquecido dos horrores cometidos contra os demais europeus. Uns xenófobos, racistas e chauvinistas de nariz arrebitado.
Enquanto discutíamos qual o impropério mais apropriado para dirigir à Dona Merkel e aos seus apoiantes, a Europa desfazia-se na banalidade, no ridículo e no impensável. A Comissão não tem qualquer poder, o Banco Central Europeu não pode intervir, o Parlamento Europeu cinge-se a regular o volume das jaulas para os coelhos e o ponto de um qualquer queijo francês e o Tribunal Europeu não existe, para efeitos práticos...
Concluí-se, assim, que o que tem ocorrido na Ucrânia estava já previsto, escrito e profetizado há muito. À atitude de Putin, dificilmente previsível, opõe-se uma resposta ocidental que só não podia ter mais clichés se não se quisesse transformar num filme de terceira classe de Bollywood. Fracos e divididos, os líderes europeus e o presidente norte-americano mantém uma posição demasiado benévola para com os abusos sistemáticos e propositados da Federação Russa, da cúpula do Kremlin e do ex-KGB que lideram esta verdadeira oligocracia corrupta. Sendo certo que as sanções económicas enfraquecerão grandemente o esforço russo, mais é necessário para impedir este gigante glutão de amputar, sórdida e abusadoramente, os seus vizinhos, nossos parceiros e eventuais futuros estados membros. Já há seis anos, o mesmo ocorreu com a Geórgia, que sofreu enquanto o Ocidente se calava e acedia às exigências russas.
Já há alguns anos, um famoso intelectual alemão escreveu, em verso, um texto a condenar os intelectuais alemães durante o governo nazi. O texto - um pouco alterado por mim e pelo tempo - é um alarmante aviso do que nos esperará, se continuarmos a insistir patética e irrefletidamente nas quezílias que nos separam: "Primeiro, os nazis prenderam os socialistas. Não os defendi porque não era socialista. Depois, foram os comunistas. Não os periquito, pois não era comunista. A seguir, foram os judeus. Não os ajudei, porque não era judeu. De seguida, foram os homossexuais. Nada fiz, pois não era homossexual. Por fim, os nazis vieram para mim... E já não havia ninguém para me defender."
A União Europeia necessita, urgentemente, de um líder forte. Não um político, um tecnocrata ou um burocrata. Um Político, com P maiúsculo. Um político com rumo e com ideais fortes. Um novo projeto de união, que termine as querelas intestinas que nos minam. Um novo rumo, que comprometa as nações mutuamente, que as force a compromissos e que as faça parecer - e ser! - mais fortes perante os seus vizinhos. Uma linha que faça dum Finlandês um vizinho, não uma máquina deprimida e viciada em trabalho, dum Espanhol um amigo e não um gastador incorrigível, dum Bávaro um colega e não um racista orgulhoso e narcisista. Uma última tentativa de juntar, uma vez por todas, este fantástico, maravilhoso, diverso e único continente que é o nosso! Já o fizemos uma vez, por que esperamos para o repetir?
Miguel Padrão