Tudo começa num dia nevado, na fria e agreste Rússia czarista, lá para 1905. Uns tiros, mortos e sangue depois e temos as bases para o partido comunista, "russamente" falando. Obviamente que a ideia já tinha precedentes, teóricos alemães, franceses e ingleses por detrás, e um pacote de propostas e medidas bastante atraentes para os operários europeus, rodeados pelo luxo da nobreza e burguesia dos impérios que prosperavam na Europa dos séculos XIX e XX. Aqueles, mergulhados na imundície dos seus parcos lares, perseguidos e extorquidos ao máximo pelos proprietários e responsáveis, apenas desejavam terminar com a propriedade privada, repartir a ostentação de uns poucos para minorar a fome de milhões, rever, quiçá, a experiência (promissora mas com um fim trágico) da comuna de Paris. Entretanto, embriagados com o sucesso que conseguiram com o célere triunfo pós primeira guerra mundial, não se deixaram ficar por aí.
Procurando levar os supracitados ideais revolucionários para longe da conservadora Europa, para novos destinos tropicais, cujo calor poderia facilitar a abertura das mentalidades à boa nova, o comunismo e as suas ideias de igualdade foram, mais ou menos, melhor ou pior, exportadas um pouco por todo o Planeta. Infelizmente, com os resultados que ainda hoje estão à vista.

Concordem ou não, a verdade é uma: não houve um único, um simples governo comunista que não tivesse acabado a matar concidadãos. Retiremos, está claro, regimes sem tempo para implantar estruturas que o permitissem ou alguns poucos regimes de coligação com socialistas ou outros grupos políticos. De resto, cada cavadela, uma minhoca. Dos genocidas do Khmer Vermelho à loucura Estalinista. Das manias de Ceauşescu à paranóia de Kim il Sung. Das purgas Maoístas às taras Cubanas. Da dissimulação de Salvador Allende ao fanatismo de Ho Chi Min. Dos mongóis satélites da URSS às estranhas janelas checas que ejetavam ministros. Das Guatemalas, Etiópias e Argélias do último século aos Azerbaijões, Cazaquistões, Ucrânias e Países Bálticos das décadas de quarenta e cinquenta do século passado, nenhuma comunidade escapou à fúria das suas chefias comunistas. Nenhuma. Ponto final. A questão que nos resta é: porquê?

Poderíamos procurar explicar todos estes acontecimentos com uma carta astronómica, uma cartomante e uma bola de cristal, lamentando os vícios e defeitos individuais de cada uma daquelas mentes brilhantemente perversas, e conseguiríamos um análise psicanalítica bastante satisfatória. Isto, é claro, se tal padrão não se verificasse em todo e qualquer regime comunista. Daí, a regra dos grandes números não nos dá grandes hipóteses: algo está, tem de estar, inerentemente errado no modelo comunista. Ou são os trabalhadores que não estão para ser reduzidos a números ou são os números que não têm disponibilidade para ser moldados como os comunistas desejam. Ou são os proprietários reacionários que sabotam o sistema, ou é antes o sistema que não aguenta qualquer pressão extraordinária. Ou é o comunismo um sistema falhado à nascença, na teoria, ou é a corrupção humana a responsável por tal degeneração de um sistema tão frágil e artificialmente mantido.

Aparte dos seus diversos defeitos, o capitalismo tem uma força secreta, omnipresente e totipotente, cuja manutenção é a chave para o sucesso do sistema: o braço duplo da liberdade individual e do famigerado mercado. Vamos por partes: os homens, como acima referido, devem nascer iguais, em direitos e liberdades. Contudo, essa liberdade não deve ser mais do que um instante eterno, uma condição que, além de nos definir na nossa condição humana, jamais a devemos tornar num empecilho à nossa progressão, à nossa ambição e às nossas capacidades. Devemos procurar ser diferentes, pensar diferente, fazer diferente, destacarmo-nos do oceano indiferenciado de onde vimos. Caso contrário, caminharemos para uma sociedade indiferenciada, que se poderá, sim, manter, mas nunca prosperará. Na melhor das hipóteses, será mediana, na pior ruirá como um castelo de cartas ou, mais emblematicamente, como os regimes de Terceiro Mundo após a queda da URSS e a retirada das mesadas soviéticas. Igualdade sim, de acesso às mesmas oportunidades, aos mesmos serviços e a iguais condições mínimas, mas nunca uma igualdade que procure estandardizar cegamente famílias, cidades ou países inteiros, acabando no que de pior pode ocorrer a um Ser Humano: ser monótono.

Juntando a esta hipotética igualdade, temos também um grave problema: a cobiça humana. Se já numa sociedade ocidental, muita gente seria capaz de vender a mãe, o rim e a namorada para, profissionalmente, comprar um iPhone ou ir de férias para Cancún, imaginem a frustração de viver numa sociedade padronizada. Conduzir o nosso carro, igual a todos os outros, produzir o mesmo número de parafusos que os nosso 13.592 colegas, receber os mesmos 4000 rublos que todos os nossos conhecidos, sejam eles lavadores de ruas ou engenheiros químicos, receber a mesma cesta básica que os restantes 143 milhões de compatriotas nossos, levantarmo-nos precisamente à mesma hora que os nossos 450.671 vizinhos, para fitar a mulher que o Partido, um corpo estranho mas omnipresente e omnisciente em todos os quadrantes da sociedade, nos confiou. Por sinal, esperamos que bastante similar aos restantes 71,5 milhões de mulheres da Pátria Amada. Agora, repitam o sentimento por sete dias, depois multipliquem-no por cinquenta e duas semanas, depois por cinco anos, depois mais cinco e mais outros cinco. Pontuem esta emocionante história de vida com umas guerras, invasões e massacres e aqui têm a dinâmica, interessante e diferente vida num país comunista. Não admira que, dos poucos que não enlouquecem totalmente, alguns parcialmente aptos acabam por brigar pelo poder, terminando a disputa geralmente no mais louco dos saudáveis. E assim, instalado um comité de salvação, um soviete extraordinário, uma cúpula fechada, paranoica e briosa dos seus interesses, temos os panos a descerrarem para a segunda fase do governo comunista. Se acharam a rotina dum comunista comum (sim, por acaso observei agora que deve ter havido um erro de translineação, de comumista para comunista) demasiado agitada, levantem-se agora e embarquem para a Coreia do Norte, pois vamo-nos cruzar com o sétimo céu da vivência comunista: a polícia secreta, vulgo cantinho do castigo ou câmara da reflexão. De resto, creio que já temos uma importante parte da tendência comunista para o genocídio explanada.

Noutro vértice desta trilogia trágica, a fraternidade. Sim, o companheirismo dos tempos passados, dos navegadores dos Descobrimentos, dos soldados de Alexandre o Grande, dos gregos das épicas epopeias, tornou-se crescentemente numa versão personalizada da nacionalização, num "o que é meu é meu, o que é teu é nosso" que acaba por agraciar toda a economia com um duplo dilema: se quem sabe e concretiza não é beneficiado por tal, nem ganha qualquer relevância face aos seus iguais, antes sendo preterido pelos aproveitadores, oportunistas e delfins dos poderosos (ver o parágrafo anterior, se ainda acreditam na igualdade numa sociedade comunista), o que o prende a um país que o hostiliza e segrega, apenas por ser capaz e por se distinguir? Como conseguirá o Estado substituir a iniciativa privada, que certamente fugirá da coletivização e nacionalização a que se poria doutra forma a jeito?

Acima de tudo, e numa questão pessoal e mais basilar, reflitemos: como se pode afastar a paranoia que reina nas sociedades com esta índole socialista radical dos seus pilares de fraternidade mal interpretada? Como se pode justificar o isolacionismo destas sociedades, o medo da intervenção estrangeira, senão aliado com o poder das elites expropriadas pela inevitável ronda de nacionalizações, expulsões e roubos, e que retornam para retomar os bens que são seus por direito. Sim, porque aliados a todos os fundamentos de cariz prático, este é outra questão polémica à qual não se obtém resposta: e a lei da propriedade? E os direitos que qualquer nação que se sinta digna de tal definição, respeita e faz cumprir, no que aos bens privados diz respeito? Porque é que anos de esforço, trabalho e suor devem ser pura e simplesmente coletivizados e tornados públicos? Porque é que devemos alienar propriedades privadas dos seus donos legítimos? Acima de tudo, porque é que o comunismo há de ter efeitos retroativos? Quem levou um ideal romântico, de preocupação mútua, de desinteresse, um dos pilares altruístas da nossa moral judaico-cristã, a tornar-se nesta monstruosidade devoradora do labor alheio?

Finalmente, aproximamo-nos do vértice final deste triângulo deficientemente escaleno: la liberté, certainement. Muito embora haja muito a dizer-se deste tópico, tanto que poderia bem escrever dois ou três textos destes, tentarei ser tão conciso quanto possível: a liberdade, facilmente divisível em diferentes vertentes (seja a de expressão, de associação, de movimento, de opinião, etc) cinge-se puramente a um princípio básico, repetido até à exaustão por todos nós: a nossa termina onde e quando começa a do vizinho. É assim, sempre o foi, sempre o será, mas encontramo-nos por vezes perante um significativo entrave a este axioma: quando duas liberdades, seja pelo que fôr, entram em conflito, quem define qual a liberdade que se sobrepõe, nesta "zona cinzenta" de indefinição ontológica? Bem, no Ocidente, os tribunais e demais órgãos jurídicos tratam do problema, sem grandes hesitações e seguindo, esperamos, a legislação indicada para um tratamento o mais justo possível de ambas as partes. Numa nação governada pelo "Povo", basicamente é o mais igual a ser mais livre. Resumindo em miúdos, o Grande manda no pequeno... Isto, se inicialmente pode parecer uma alternativa simpática e bem-vinda para justiças ineficazes e morosas, como a Lusa, esconde um ligeiro inconveniente, além mesmo das arbitrariedades a que conduziria e que todos nós, como cidadãos-modelo, aplaudiríamos fragorosa e convictamente, ou não fosse ter o tio devorado vivo por uma matilha de cães raivosos a melhor maneira de nos sacrificarmos por uma causa maior. Isso e odiar todos os polvos ocidentais. Figurados, está claro, que os literais, só se engasgarem o Grande Líder. O maior inconveniente, como dizia, é amedrontar alguns elementos mais fracos, que podem começar a sonegar informações ao longo de todo o canal de comunicação, até ao Partido, levando a que a sempre clarividente, informada e esclarecida liderança da Nação acabe a cometer pequenas e casuais falhas ou " inconseguimentos". Nada de mais, convenhamos, apenas responsável por uns milhões de baixas quando ninguém teve coragem de dizer a Mao que à fome que este decretara se juntavam inundações no Rio Amarelo ou quando os generais soviéticos se preferiam entregar ou suicidar a avisar Estaline que tinham sido cercados pela Wehrmacht. Pormenores que a história não recordará, mas que mesmo assim merecem uma pequena nota de rodapé. Afinal, a culpa é ou não é sempre do Hitler mau, dos Americanos pútridos, do tempo ou de Deus, pelos quais nutrimos tamanha admiração?

Em apanhado, paranoias, loucura pura e crua e mania das grandezas. Assim reduzimos e resumimos os erros do Comunismo, os erros de interpretação da Revolução Francesa e o erro que o nosso mundo andou por mais de 90 anos, no século passado, a tentar ultrapassar. Num verdadeiro banho de sangue nunca antes visto, perderam-se mais de 150 milhões de vidas. Em dois teatros de operações, desfizeram-se famílias, nações, redesenharam-se países, estados e nações só para se justificarem uns parágrafos. Mas, no fim de contas, não há por que nos espantarmos: sempre foi assim. Sempre se matou e morreu enquanto velhos acertavam vírgulas em salas forradas a honrarias e recheadas a luxo. Sempre se cometeram as maiores atrocidades, os maiores pecados, os mais bárbaros crimes, em nome de religiões, símbolos e ídolos. As guerras mais sangrentas, cruéis e desumanas sempre se deram por detrás da ostentação das grandes Cortes. É plenamente normal que o maior morticínio da nossa história, o mais democrático conflito da Humanidade no que à proveniência das baixas diz respeito, mas ao mesmo tempo o que mais enriqueceu as elites e concentrou a riqueza mundial, tenha sido escrito sobre o sangue de mentirosos que juravam defender a igualdade e a liberdade, e mentirosos que julgavam defender as elites e o capital.

Miguel PadrãoMiguel-Padrao

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