Hoje, num cenário totalmente diferente, vemo-nos confrontados com duas situações idênticas, embora divergentes entre elas. Situações que nos deveriam revoltar e preocupar, mas que a comunicação social relega sempre para um terceiro ou quarto plano, provavelmente ao nível das confissões de celebridades ou dos resultados do euromilhões. Infelizmente, serão provavelmente essas as causas citadas, daqui a um quinquénio, uma década ou um século, as causas evidentes do nosso declínio enquanto sociedade, enquanto fonte de inspiração e iluminação do restante mundo e enquanto exemplo a seguir e a venerar.
Uma delas, a Ucrânia, já foi tão dissecada, analisada, pesada e medida por todos os analistas, comentadores e jornalistas que me enjoou para, pelo menos, as próximas 18 Perestroikas. Apenas me importo agora com os desgraçados jogadores do Shaktar Donetak, cujo estádio foi ignominiosamente destruído por uma guerra tão cruel que nem o futebol poupou!
Assim, após um minuto de silêncio por todos os soldados russos que Putin continua a colocar em bases russas, apenas para surgirem com um sobretudo de pau à porta de casa, resta-nos Hong Kong. Após dias, semanas e meses de ações de protesto, de protestos violentos, de violência policial, de políticas de contenção escabrosas, de escabrosas declarações de responsáveis e de irresponsáveis ações de Pequim, o Comité Central do Partido Comunista Chinês parece estar finalmente a ganhar o jogo. Após violenta contestação à arcaica e insustentável ditadura comunista, após semanas de bloqueio à bolsa de valores do pulmão financeiro chinês, após diversas cargas policiais contra manifestantes indefesos, após ameaças medievais de Pequim, após o Ocidente se silenciar, o chapéu de chuva amarelo acabou por se fechar, forçado pelo evidente isolamento a que a inaptidão ocidental os votou.
Colocando mais uma vez a política ao serviço da economia, ao invés de enfrentar corajosamente as autoridades chinesas, todo o G20, os Estados Unidos ou a União Europeia se votaram ao mais indigno, cobarde e degradante silêncio, perdendo assim mais uma oportunidade de se mostrarem como faróis da Humanidade e de colocarem, de uma vez por todas, os chineses no seu lugar, retirando-lhes o estatuto de prima dona que há muito mantêm. Não procurando ostracizar a China ou qualquer outro país da comunidade internacional, é, evidentemente, insustentável uma situação como a atual, na qual o Império do Meio persegue impunemente opositores, enquanto o Ocidente pune exemplarmente os pequenos ditadores que, pelo seu pequeno poder, acabam por ser os alvos ideais da nossa catarse democrática coletiva. É inconsequente acusarmos as Espanhas, as Bélgicas ou os Sudões deste mundo de impedir os movimentos autonomistas locais, enquanto todos fechamos os olhos aos movimentos autonomistas de Hong Kong, ao constante desejo de independência Tibetano ou à crescente guerra civil que grassa entre as autoridades centrais e os independentistas islâmicos, na província de Tijuan e no sul deste verdadeiro continente que tentamos uniformizar e estandardizar, com o único efeito de reforçar os desígnios centralistas de Xangai e Pequim. Finalmente, é injusto continuarmos a tratar privilegiadamente o governo da República Popular da China, seja diplomática, económica ou politicamente, enquanto as fábricas chinesas destroem a atmosfera de todo o planeta, enquanto as condições de trabalho e vida da grande maioria dos chineses forem inferiores às dum operário vitoriano, enquanto a censura e a perseguição de opositores ao regime forem uma liberdade, enquanto Pequim continuar a estudar um regime tão louco quanto o de Pyongyang, um regime liderado por um lunático que serviu o tio a uma matilha de cães esfomeados, um regime que é um perigo para a Humanidade e uma panela de pressão em constante e preocupante ebulição.
Poderia continuar até à exaustão a justificar-me, mas o que é certo é que, como diriam na gíria financeira, "Money talks, bullshit walks". E, moeda a moeda, nota a nota, coração a coração, esperança a esperança, o Ocidente vai perdendo influência. Vai desfazendo a sua capacidade negocial e destruindo toda e qualquer vantagem que possa conservar face ao impiedoso punho do vermelho autoritarismo chinês. Perde-se na fraqueza dos seus líderes e, com eles, perde aliados e reforça as pretensões chinesas, focando-se simples e exclusivamente nas mais-valias económicas e financeiras que julga poder vir a obter. Lamentavelmente, engana-se, e fá-lo indelével e incorrigivelmente. Não haverá outra oportunidade como esta. Jamais estaremos tão perto de poder estrangular o crescentemente taurino pescoço do Império do Meio. Jamais estaremos tão fortes para exigir uma revolução social neste tão assimétrico país. Nunca mais conseguiremos negociar com tanto ascendente com este regime tirano e criminoso. Jamais seremos perdoados pelos chineses que nos odeiam desde as Guerras do Ópio, desde a humilhação a que a Entente Ocidental os sujeitou. E nós, nós também não nos podemos iludir. Temos de mudar, de olhar para o Oriente com suspeitas e atenção. Devemos apoiar os nossos aliados sul coreanos e nipónicos. E, acima de tudo, jamais poderemos perdoar quem nos traiu. E hoje, excelências, hoje, políticos, hoje, responsáveis, hoje vocês traíram-nos. Apenas se lembrem que, não fosse a nossa democracia, a nossa liberdade e a nossa justiça, que tanto relegam para segundo plano, atrás do vosso petróleo, das vossas fábricas, da vossa mão-de-obra quase escrava, não fossem os direitos humanos que consideram acessórios, não fosse a nossa moderação e compreensão, e há muito já teriam sido servidos aos cães.
Miguel Padrão