Em toda a sua extensão, a peça teatral do Maningue Teatro, “Jesus”, uma adaptação do romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, que se caraterizou como um encontro perfeito entre duas gerações e multidisciplinaridade em palco, expõe argumentos que, 32 anos depois da problematização da humanização de Cristo por Saramago, nos conduzem a uma tese: Qual é a legitimidade dos propósitos de Deus? No seu todo, esta peça de teatro serviu “como instrumento de reflexão e de autoconhecimento desenvolvendo competências emocionais inigualáveis e momentos catárticos”, como comentou a professora Cláudia Videira após a estreia. O ciclo de exibição terminou na passada quinta-feira, 16 de março de 2023, na Escola Portuguesa de Moçambique Centro de Ensino e Língua Portuguesa, mas o seu impacto sustenta ainda debates e reflexões variadas.
Repensemos, agora, sobre esta trama, incorporada pela aluna Rita Morais, quanta presença em palco e tarimba artística a acompanham (!), como Jesus-novo e Diabo-adulto, Patrícia Alves, como Maria; Faira Semá, Dora Vieira e Sónia Pereira, como Deus, e Rogério Manjate, como Jesus-adulto. Quem conhece a história “oficial” de Jesus, escrita nos evangelhos, fica com a impressão, depois de ver a peça, que esta complementa toda uma história cheia de questionamentos.
Quem assim pensa não está de todo enganado. A verdade é que, a partir de uma ficção humanizada da vida de Jesus, agora recriada e transportada para o palco do Auditório Carlos Paredes pelo professor de Teatro, Rogério Majante, abre-se espaço, mesmo que ficcionado, para descortinar o outro lado de Jesus, cheio de dúvidas, questionamentos, dor, angústia, miséria e uma evidente recusa para ser o sacrificado para o bem de todos: “Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem qualquer”.
Excelentes e catárticas, as personagens cumprem, em cerca de 45 minutos, os seus papéis: Jesus acorda atormentado pelos sonhos, estranhos, sobre a sua morte e de outros meninos, em Jerusalém. Sonha com o pai, José, e soldados que os queriam matar. Mas não entende, não sabe do que se trata e isso deixa-o apreensivo. Maria, sempre mãe, acalenta o coração do seu filho, mas sente que existem respostas que não podem ser dadas. Distrai-se, conta, retrai-se. A verdade sai, aos soluços, muito menos do que a carga de perguntas. Há inconformismo, desilusão, dor…e muitas dúvidas.
A narrativa não para, mesmo diante de sucessivas questões. Em instantes, as personagens, que mudam de rosto ao longo da história, transportam-nos para o outro mundo, onde as questões de Jesus se intensificam, agora dirigidas ao seu criador, Deus.
“Jesus” não é uma peça sobre a vida e obra de Jesus Cristo, como se poderia pensar. É uma história intrínseca, sobre os processos de legitimação de um poder, uma escolha, razões e frustrações do Filho de Deus. Talvez seja por essa razão que se usam e abusam os argumentos sobre a teoria da personalidade: “Quem sou eu”, questiona Jesus, sobre as suas origens, filiação, a sua grandeza e sobre os desígnios de Deus até à sua morte.
A peça busca a fuga ao cânone para nos transmitir a ideia do significado de “escolhido”, da submissão e missão, da legitimidade do poder, da “nomeação” sem consulta. Talvez seja por isso, o livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, tenha sido considerado ofensivo por diversos setores da comunidade católica, tenha sofrido alguma repressão religiosa no seu próprio país.
Em toda a peça, Jesus surge desconexo, com interrogações sobre o seu valor salvador enquanto homem comum, mesmo que filho de Deus. “Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa”, questiona Jesus a um Deus visivelmente seguro, determinado, cujos olhos revela, pelo menos para a plateia, o estado da sua alma.
É, na verdade, interessante perceber a forma como o ator e professor Rogério Manjate, reinventando-se, consegue transcender e dar múltiplos significados à história.
Música e figurino: outra marca forte da peça
Outros elementos que tornam a peça “Jesus” memorável e artisticamente conseguida é o figurino da professora de Educação Visual, Sara Teixeira, e as melodias de Violino e Piano, de Agnes Golias e Leandra Reis. Os momentos de música, quebrando silêncios e traduzindo emoções dos personagens, foram úteis para ajudar a contar a história.
Escola e Excelência
Este grupo de professores e aluna está de parabéns pela excelência do projeto, mas está de parabéns toda a EPM-CELP porque, enquanto instituição, preconiza uma escola que se expressa e acontece para além das aulas, uma escola que se apropria da(s) Cultura(s) e de expressões estéticas diversas e se realiza, em pleno, enquanto instituição educativa, da Educação e para a Educação. Estamos já curiosos para assistir ao próximo projeto do Maningue Teatro.