Ao sair da loja eu vi-o, com um andar apressado e atrapalhado. Era o meu antigo vizinho. Quando éramos pequenos brincávamos imenso, corríamos ladeiras acima e ladeiras abaixo juntos, íamos para a escola juntos e comprávamos os mesmos rebuçados que eu comprei naquela terça feira.
Eu conhecia-o bastante bem. Era aquele tipo de rapaz amigo, quase como um irmão mais velho, disposto a fazer tudo para me proteger. Ele também me conhecia bastante bem, demasiado bem até... eu contava-lhe tudo, ele sabia tudo, desde as minhas melhores aventuras até às minhas piores asneiras.
Passamos uma infância e uma adolescência incrível um ao lado do outro, mas infelizmente acho que ele já nem me conhece e para ser sincera não sei se ainda o conheço. Enfim... foi trágico tudo o que ele passou, com a morte da mãe e a demência do pai, ninguém merece... Eu tentei ajudá-lo, mas ele fechava-se cada vez mais e quando teve de se mudar, com o pai, para outra cidade, nunca mais foi o mesmo e ele deixou de me responder.
Fiquei surpreendida ao vê-lo ali, «O que estará ele a fazer aqui? E com tanta pressa?». Atravessei a rua e, antes de perder a coragem, chamei por ele. Ele olhou para mim muito espantado, no início pareceu não me reconhecer, mas depois apareceu um brilho naquele olhar e um sorriso encantador no seu rosto. Abraçou-me, disse o meu nome e confessou que tinha imensas saudades minhas. Achei um pouco hipócrita, pois se tinha tantas saudades, podia, pelo menos, ter respondido às minhas chamadas. Mas parei de o julgar, assim que reparei que ele não parecia muito bem.
Estava magro, a cara pálida e usava um casaco enorme com mangas compridas. Perguntei se ele não sentia calor, ele hesitou e respondeu que não. Obviamente estava a mentir. Ocorreu-me tanta coisa à cabeça naquele momento...fiquei calada, passei segundos sem dizer uma simples palavra, apenas a digerir o que estava a observar. Senti então uma mão a tocar-me no ombro e a chamar-me de volta à terra. Era ele com uma leve expressão de preocupação. Não parecia estar mais com pressa.
Perguntou-me como eu estava, como estavam os meus pais e como corria a universidade. Eu respondi a tudo, mas não tive coragem para lhe fazer as mesmas perguntas. Ofereci-lhe então um rebuçado, e foi aí... foi aí que eu vi. Vi o que ele tanto escondia debaixo daquelas mangas compridas. Os braços dele estavam cobertos de marcas de droga e cicatrizes paralelas aos ossos do pulso. Fique em choque, como se um raio me tivesse traspassado o corpo. Ele fingiu que não percebeu a minha expressão, agradeceu o rebuçado, disse que estava com pressa, deu-me um beijo na bochecha e foi-se embora. Foi embora com a mesma pressa de quando eu o vi do outro lado da rua, do outro lado da rua de S. Martinho.
Maria Morango (11.º A1)
Produzido em ambiente de Oficina de Escrita
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