
Afinal, concluo que nem mesmo a calçada me quererá escutar, ou mesmo que o queira não o pode. Para mais, seria inútil pregar aos que não ouvem, mesmo sendo menos duro do que pregar aos que ouvem e não se retratam.
Arredo, por isso, pé da magnífica calçada onde improvisava um púlpito, para me dirigir aos Céus: se até agora me concederam todas as bênçãos, se deles vem o sal com que deveria expurgar os pecados terrenos, se deles me são ditados estes sermões, talvez também me traga auditório que se resigne a ouvir-me. Alea iacta est. E, de facto, sorri-me. Afinal, de nada me servirá alertar-vos, ò Pedras, vós que já haveis sido a imagem do hercúleo esforço centenário que esta pequena Nação consumou, que esta pátria abraçou e de que este povo se deveria orgulhar, se hoje vos encontreis amorfas, geladas pelo temor do futuro que vós mesmas construísteis. Não é assim? Ainda mal.
Resigno-me: não mais me poderei servir de vós, que não servis a verdadeira noção de heroísmo e coragem que o parentesco com Vasco da Gama, Viriato e Magalhães deve exaltar na sua pródiga descendência. Falarei então às aves, cuja mensagem de esperança poderá acordar e desamarrar as vossas graníticas consciências, movendo-vos para uma urgente mudança de que mais tarde vos orgulhareis.
Ou não fossem as minhas irmãs aves a esperança de náufragos e navegadores desafortunados, quando perdidos na azul imensidão do líquido elemento. Ou não voassem elas mais perto do Senhor, que assim as agracia com a sua infinita sapiência, inegável bondade e santa e iluminada mensagem. Ou não tivessem elas a alma tão leve de negros e o fígado tão oco de eflúvios males, que se pode assim o seu arveolar corpo elevar sobre as nossas terrenas cabeças, dominando o único elemento virgem de ação humana.
Contudo, terão por decerto as minhas irmãs aves os seus pecados, pois nem a alma de um santo está livre de alguns recantos mais negros, e dos quais farei menção neste sermão, procurando certamente o equilíbrio de críticas e louvores, pois como disseram os Antigos, Virtus in medium est.
Não louvarei, deste modo, o altivo pavão, cuja espampanante e exótica plumagem apenas ludibria e cujo alto voo não faz chegar mais perto do Senhor - ao contrário do que os antigos pensavam - nem, muito menos, a imaculadamente branca garça, cuja negra branqueza apenas nos reafirma a caducidade das aparências, caducidade que já todos os doutores da Igreja referiram, mas que ainda hoje ceifa as almas dos mortais, apaixonados pela beleza carnal e pelo prazer do pecado, sem pensarem sequer na perdição em que cairão.
Contudo, espero não cair em erro quanto ao meu auditório: jamais pregarei dos falsos, hipócritas, aproveitadores, ou impuros, a menos que seja para os corrigir; sei, sim, que a eles irei falar, pois, afinal, são eles os alvos deste discurso, é na sua conversão e na remissão dos seus pecados que consiste a minha missão. Assim, jamais me sairão da mui cansada boca elogios à "perfeição" de qualquer género, por saber que, neste Purgatório terreno em que vivemos, jamais nos aproximaremos sequer da perfeição: todos nós, homens e aves, plantas e peixes, mamíferos e insetos - sem esquecer quaisquer seres de minúsculas dimensões - estamos condenados ao pecado, eterna e irremediavelmente. Devemos, isso sim, corrigir-nos, procurando, não podendo atingir a perfeição, ao menos abeirar-nos o mais possível dela e aprender com as virtudes alheias. Nada nem ninguém é, foi ou será perfeito - por vezes até d'Ele desconfio, ao olhar ao meu redor - e devemos saber conviver com isso.
Mesmo assim, há que constatar que há representantes da Esfera Alada que melhor ilustram as virtudes que procuro elevar, por decerto aprendidas numa mais longa estadia no retângulo ajardinado que recobre o ocidente da velha Europa.
É esse o caso da lira, brilhante cantora e construtora. Não, por decerto que me não refiro à lira que o devasso Nero tocava enquanto via a sua Roma imperial a arder. Muito menos à brilhante constelação que intensamente ilumina a etérea esfera nas noites de penumbra. A lira a que me refiro, humilde habitante das florestas tropicais da Terra Austral do Espírito Santo, não só merece o nosso espanto como também o nosso aplauso e panegírico pela sua modéstia, o seu empenho e as suas capacidades para apreender quase todos os ruídos, uivos e grasnares de que foi recheada a sua paisagem natal. Demonstrado a mor importância do trabalho que permitiu a um pequeno retângulo de escassos recursos e população afirmar-se num continente de gigantes e lançar-se para o Mundo sem medos nem temores, dando-lhe novos mundos, esta pequena maravilha do Gênesis empenha tudo o que possui, todo o seu tempo e forças na edificação de um primoroso ninho, capaz de fazer inveja a qualquer outra ave. É, aliás, de fazer corar, quando de solidez e impermeabilidade se trata, muitas obras humanas. Labor Omnia Vincit, já dizia Vergílio, o que esta formiga voadora, sempre ocupada pela sua árdua rotina, parece confirmar.
Questiona o indignado ouvinte, e com toda a pertinência e autoridade, a razão de tal investimento. E esta é, decerto, a mais primorosa e ternurenta razão para a ode a este pequeno ser, que assim está certamente incluso nos grandes: dar-lhe-á serventia a sua única cria, que nela crescerá e a ela poderá sempre retornar, à imagem da pátria de marinheiros que, apesar de cedo partirem, deixando chorosos coros que salgaram o Mar, a ela sempre poderão voltar, afinal Sementem ut feceris, ita metes, sendo sempre recebidos com todo o amor e carinho que o retorno de um filho reaviva.
Finalmente, há que se fazer menção das virtudes sonoras desta espécie, autêntico arauto do esplendor auditivo com que a nossa insignificante esfera foi brindada; verdadeira poliglota da Natureza, não se reduz a produzir um deleitoso canto, mas a imitar todos os que lhe chegam ao abençoado ouvido, lembrando-nos claramente um dos nossos intrépidos mercadores e missionários, cuja mundividência nos permitiu estabelecer duradouros laços com todas as culturas, todos os povos e todos os credos, no primeiro ímpetuo de globalização conhecido.
Mas, já diziam os antigos, a caridade deve começar em casa: de nada nos servirá espalhar o bem-estar à nossa volta, enquanto nos corroemos a nós próprios e aos nossos. Ou, ao menos, que nos descompunhamos a nós para servir aos nossos. E disto o supremo exemplo é pelo pelicano representado. Autêntica mãe-galinha, porque pelicana não nos serviria a nós, a pelicana arranca as penas do seu próprio peito, apenas para reconfortar e aquecer os seus frágeis rebentos no seu ninho improvisado, num heróico ato de bondade e dedicação, que apenas teve - e ainda tem - igual nos sacrifícios inimagináveis que o povo de Viriato consumou para permitir um melhor futuro aos seus descendentes, que vingam hoje nas mais diversas áreas e respondem aos mais complexos desafios, mormente graças à inflada cobertura protetora que lhes legaram os seus progenitores e que se traduziu na melhor educação, saúde e condições disponíveis, e que por fim hoje frutificam.
Finalmente, resta-me tratar da maior das virtudes, que há muito nos foi legada pelos nossos egrégios e valorosos antepassados e que continuamos a sustentar como o magnífico Albatroz. Sim, este herói dos céus dever-nos-á continuar a inspirar e guiar, tais são as suas intermináveis migrações de meses sobre os 4 pontos cardeais, os 5 oceanos e os 6 continentes, em busca da sua Terra Prometida, tal qual no correr de séculos, dezenas, centenas, quiçá milhares de rios de sangue luso desembocaram no imenso Oceano, numa Diáspora que torna o nome da Nação conhecido em todos os confins do Planeta, seguindo a velha máxima de que "Onde estiver um português, aí estará Portugal".
Mas mais acresce à atribulada travessia do nosso irmão Albatroz o terrível sacrifício, verdadeiro Suplício de Tântalo que desalmadamente suporta, do isolamento constante dos seus, quando os largos Mares Austrais, as rudezas do percurso ou uma qualquer eventualidade imprevista o separa, como separou e agrilhoou por longos anos Fernão Mendes Pinto, Pêro da Covilhã e outros que tais, longe da sua pátria amada, ao serviço da Coroa e do Império, que tanto deles lucraram e a quem estes honrados exploradores nem tença pediram.
Assim, após dias e noites sem pouso firme, ventos e ares sob a asa, mares e praias na vista, atingem esse seu cândido destino de nidificação, longe das distantes brumas gélidas e da venenosa maledicência dos que, temerosos e poltrões, lhes maldizem a partida e acusam de debandada, poderão descansar. Poderemos sorrir: levámos a nossa caravela a bom porto; escapámos às austeras misérias que nos impunham, às bruscas tempestades do percurso, a todas as agruras que esta travessia do deserto nos impunha. E principalmente, orgulhar-nos-emos: refizemos os passos dos que sempre nos orgulharam e elevaram, dos que aqui citei e que nos observam hoje, esperando que, como eles, sejamos grandes. Não os falharemos.
Triunfaremos. Afinal, nem só de defeitos é o Homem feito.
Miguel Padrão (11.º A1)