que um vão conjunto de palavras
Uma narração da eterna desgraça humana
Cedo o sol nasceu naquela agitada manhã de primavera. Como um monge encapelado, monsieur Hubert levantou-se rápida e intempestivamente, lavou a jovial cara, vestiu o seu sobretudo de gala, mordiscou umas torradas deixadas pela namorada na torradeira ainda quente e saiu bruscamente à rua. Que tristeza, o dia só ter 24 horas. Porque não 48, 72 ou mesmo 3600, pensava enquanto descia a interminável escadaria que o separava da primeira paragem do elevador, que o faria descer mais comodamente os restantes duzentos metros. Aí, já liberto das preocupações filosóficas, Hubert já parecia outro: procurava resolver os problemas com que se depararia poucos minutos depois, na sua benfeitora "entidade empregadora". Rapidamente, atravessou os lindos e ataviados jardins, as magnânimas fontes de mármore, as luxuosas e grandiosas galerias, os agitados e apelativos cafés, as magníficas obras-primas da arquitetura barroca, renascentista ou gótica, os mais de dois mil anos de história. Sem pestanejar, sem hesitar, entrou na primeira estação subterrânea do metropolitano, apenas para emergir ao lado do seu destino, dez minutos de telemóvel depois. Dois minutos depois, exatamente três antes do início do seu horário, dava entrada no seu gabinete.
Minuciosamente cronometrado, diriam os transeuntes. De uma pontualidade britânica, comentavam os colegas. Um exemplo de aplicação e gosto pelo trabalho, pensava o patrão. Trivial, julgava ele. Afinal, não seria para se atrasar que lhe pagavam. Logo, atrasar-se seria impensável, como também intolerável. Ou não fosse ele um dos maiores privilegiados que jamais tinham cruzado aqueles corredores, olhado os velhos dossiers e as novas folhas de excelente.
Afinal, ele era um estagiário.
Não era pago para discutir, comentar, opinar ou pensar. Apenas para executar a sua auto-escravidão. Para ser um mero manga de alpaca, escriturário de terceira linha, moço de recados. Mas, no fim de contas, um dia poderia ser promovido, talvez mesmo aspirar a ser alguém. E, naqueles dias, ser alguém não era para todos. Aliás, só o era realmente para uma ínfima minoria, se excetuássemos a multidão de todos os que criam ser, mas, verdadeiramente, não passavam de meros aspirantes a algo que nunca seriam.
Naquela tarde, após terminar a sua supliciante maratona, Hubert encerrou as luzes do seu pequeno gabinete, cerrou as cortinas, terminou a sessão no seu antiquado - mas eficaz - computador de secretária, fechou a porta, rodou três vezes a fechadura e acelerou o passo para sua casa. Não fosse o jantar que tinha planeado com a noiva, ainda se manteria mais umas horas a rever previsões, corrigir estudos, prever revisões e estudar correções. Mas aquele não, aquele seria o seu dia. Ou assim pensava o nosso jovem companheiro. Mas não haveria previsão que o pudesse resgatar.
Tudo foi muito brusco. Uma garrafa de um forte espumante. Um olhar muito demorado. Uma troca de palavras muito breve. Uma chamada para o telemóvel. Uma questão de trabalho. Uma urgência inadiável. Uma saída apressada. Um beijo esguio e fugidio.
Uma escolha irrefletida. Uma perda eterna.
Era uma bonita noite, clara e límpida, fresca e iluminada, calma mas povoada. Sim, ou não estaríamos no centro do mundo. Ou, melhor, sobre ele: do alto do apartamento de monsieur Hubert via-se toda a cidade, na sua grandiosidade, beleza e esplendor iluminado. O lento, velho e desgastado rio, cujas margens milenares eram aos poucos engolfadas pela crescente luz dos românticos lampiões, lentamente a queimarem perfumados óleos de jasmim e azevinho e a inundarem o ar de odores. O amarelo e degradado panteão, tão abandonado como as parcas ossadas que ainda abrigava e que protegia da mais que certa profanação que os teria acometido se fora dele estivessem. A decrépita catedral também se inclinava sobre o rio, procurando beijá-lo, num beijo de Narciso que daria às suas pedras carcomidas um descanso final. Fora isso, tudo se agitava, tudo berrava, tudo se movia, todos pareciam preparar-se para morrer no dia seguinte - ou viver para sempre -, mas aos olhos de Hubert nada mais importava que o lânguido rio, a triste catedral e o soturno panteão - nada mais fitava, nada mais o distraía, mais nenhuma visão o acalmava.
Sete anos depois, ainda se relembrava da sua triste história. Do seu amor impossível. Do azar por detrás da sorte que o perseguira sempre e que lhe impossibilitara ser feliz. Isolado no topo do mundo, apenas viu o que os seus baços olhos lhe apontavam. O que a sua turva vista já não discernia, o que o seu coração não esquecera, mas que era tarde para retomar. Ou talvez não. Afinal, como se de um cão se tratasse - e mais não seria, certamente - esses sete anos tinham custado sete décadas a passar. O peso dos anos encurvava-o, mais do que a qualquer velho de rugas sulcadas na face, mais do que qualquer artrose poderia vergar, mais do que algum peso alguma vez pudera travar.
Chegava-lhe. O reencontro sempre seria possível, numa ou noutra paragem, numa ou noutra existência. E aquela, bastava-lhe. Fartava-o. Prendia-o. Não lhe permitia ser em toda a sua substância, fruir de todos os momentos. Não lhe permitia ver para além da baça refração da sua própria desgraça
Sete anos depois, apenas a torre, o seu apartamento, o frio metal dos pilares, o prendia à sua existência terrena. E cedo o desprenderam. Pendurada que estava a sua alma, pendurado ficou o seu corpo. Para, tal qual um pêndulo, oscilar com a avareza que lhe tirara a essência.
Até hoje, ninguém ousou retirar o corpo.
Miguel Padrão (11.º A1)